quarta-feira, 2 de abril de 2008

A liberdade alheia


Resido em uma cidade bucólica e trabalho na metrópole vizinha a ela.

Para tanto, de modo a não me desgastar demasiadamente, utilizo-me de locomoção por meio de ônibus-leito.

O trajeto toma cerca de 50 minutos sem tráfego intenso.

Isso no entanto, já não acontece há tempos (15 anos aproximadamente). Tudo graças naturalmente, ao sucesso do mercado automobilístico, ao EXCESSO de pessoas/trabalhadores que migram de um centro a outro, às vias de acesso mal administradas, à necessidade egóica das pessoas viajarem sozinhas em veículos para 4-5 elementos, entre outros tantos fatores...

O fato é que o trajeto leva hoje, no mínimo, cerca do dobro de tempo para ser concluído, o que indica que o viajante padrão tenta dormir, escutar alguma música com seus headphones ou leer algo durante a viagem.

Mas, é evidente, que nunca é tão simples assim.

Sempre existe pelo menos um indivíduo que cisma em falar ao celular demoradamente aos gritos ou teima em tomar seu café da manhã ao nosso lado (para alegria dos nossos tímpanos - que se regozijam com os ruídos da mastigação; e alegria de nosso olfato - que entra em êxtase ao sentir aromas de amendoim, pães de queijo, pipocas ou afins). Claro, tudo dentro de um ônibus com janelas lacradas devido ao ar-condicionado. (*)Atento ao fato que estou aqui assumindo que estamos de olhos fechados e fazemos força para não observar o festival de imundície e falta de etiqueta a que se presta o comensal ao nosso lado.

É justo nesse momento que observamos nitidamente o que é a Natureza Humana.

Fato é que em um ônibus com 45 pessoas enclausuradas, tomadas ainda pelo sono ou então pelo tédio, as situações de desrespeito acontecem com uma certeza britânica.

Isso vale também para teatros e cinemas onde são (PASMEM !!) incentivados o consumo de pipocas, balas e biscoitos em seus invólucros escandalosamente barulhentos (nunca entendi isso!).

Hoje, uma mulher com seus 38-40 anos inicia uma conversa ao celular em altíssimo tom de voz.

Estávamos separados por pelo menos 20 poltronas.

Sua falta de consideração pelo vizinho (que não era eu), que nada tem a ver com sua necessidade particular ao celular (uma ferramenta de uso breve e urgente, acredito), era explícita.

Passados os iniciais 30 minutos de conversa ininterrupta e notoriamente pouco importante, virei-me e fitei-a demoradamente.

Lhe pedi por gentileza que tentasse falar mais baixo (estava eu sentado a uns 10 metros dela, portanto fiz força para não gritar) pois qualquer dispositivo de som que estivessemos usando não estava sendo capaz de anular o efeito de seus gritos histéricos sobre nossos ouvidos..

Naturalmente, ela me respondeu gritando: "Cuide da sua vida!"

Mas que cômico....Era isso que eu estava fazendo!

O embate verbal claro, começou. A essência dele segue :

"Senhora... não lhe parece uma tremenda falta de sentimento de coletividade perceber que a sua longa e ruidosa conversa está sendo inconveniente aos demais, sem mencionar o seu vizinho ?"

Ela : "Celular é pra isso!!!"

Ao que respondi "Senhora...eu tenho dois celulares no meu bolso. Estão ambos no modo vibracall. Quando tocam me atenho a identificar quem me ligou e lhes respondo brevemente, através de mensagem de texto ou em baixo tom de voz que retorno a ligação depois. Já lhe ocorreu que aqui nenhum de nós precisa ouvir sua conversa, ou pode estar querendo dormir ou leer algo em paz ? A senhora sentiria-se à vontade se seu vizinho passasse a viagem inteira roncando sonoramente ?"

"Ah, não me enche o saco!!!! Não me interessa!"

Bingo.

Como continuar a me comportar como ser civilizado diante de uma criatura notoriamente desinteressada em considerar a remota hipótese de ter cometido um deslize ?

A discussão começou para aniquilação do meu tédio. Uma lástima adianto.

Saldo final : olhares recriminadores, cochichos sobre minha intolerância, impressões sobre minha estranheza, agremiações em defesa do celular e da liberdade de expressão.

Sartre ! Você estava certo : O inferno são os outros.

Um comentário:

Beauvoir disse...

Bem, não gosto de receber ou dar elegios, no entanto creio que essa pode ser uma boa ocasião para uma exceção: gostei muito de teus pensamentos e idéias e, principalmente, do modo como as escreves.
Simples, claro...e livre!
Saudações